Acompanhei
nos últimos meses as notícias sobre a mais recente turnê do trio canadense Rush
na internet com uma mistura de choro engasgado na garganta e alegria.
A
cada cidade em que tocavam nos Estados Unidos e no Canadá, únicos países onde
eles tocaram dessa vez, os relatos sobre as apresentações me deixavam feliz e
orgulhoso por saber que minha banda de rock preferida seguia destruindo sobre
os palcos.
Mas,
ao mesmo tempo, a proximidade do final da rodada de shows, que terminou no dia
1º de agosto, em Los Angeles, tornava mais forte o sentimento de vazio,
justificado por todas as entrevistas em que Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil
Peart afirmaram que essa seria a “última grande turnê” do Rush.
Diferentes
motivos levaram a essa decisão, o mais óbvio, e talvez o que origine todos os
outros, é a idade em que os integrantes da banda estão. O baterista Neil Peart
vai fazer 64 anos em setembro, o guitarrista Alex Lifeson tem 61 anos e Geddy
Lee recentemente completou 62 anos.
Quem
conhece a intensidade de um show do Rush sabe que não é possível que eles
cheguem à longevidade de um Rolling Stones. São músicos extremamente técnicos e
executam, noite após noite, durante três horas, épicos difíceis de tocar até
para um garoto. E, durante essas execuções, não trafegam por atalhos, não dão
um jeitinho aqui e outro ali para facilitar seu trabalho. Pelo contrário: ao
vivo, as músicas são acrescidas de solos de bateria, algumas vezes de baixo e
de um ou outro improviso de deixar qualquer um de queixo caído.
E
é de queixo caído que o mundo vem ficando há mais de 40 anos, a cada lançamento
de disco e a cada série de shows do Rush, em casas lotadas de espectadores
incrédulos. Eu peguei carona nessa jornada em 1986, quando tinha 15 anos e pela
primeira vez ouvi uma coletânea do Rush em fita cassete, com músicas do
primeiro disco ao vivo, All The World’s a Stage e mais algumas de discos como
2112 (1976), Permanent Waves (1980) e Moving Pictures (1981).
As
sessões que eu e alguns amigos fazíamos para assistir ao vídeo Exit... Stage
Left também fizeram parte da minha primeira de minha doutrinação. A história é
a mesma da maioria dos fãs do Rush. Não conseguia acreditar que podia existir
uma banda com tanta musicalidade e técnica ao mesmo tempo. E que tinha um
baterista que, além de ser monstro em seu instrumento, de tocar de forma
diferente, ao mesmo tempo com técnica de jazzista e pegada dos roqueiros mais
nervosos, era capaz de escrever letras diferentes de todas as que eu já tinha
escutado no rock.
A
voz de Geddy Lee, que tanto estranhamento causa em tanta gente, pelo seu timbre
muito agudo, entrou em meus ouvidos e foi diretamente para minhas veias,
passando a correr lá dentro com meu sangue, tal foi a paixão que tomou conta de
mim quando a ouvi.
E,
por cima daquela cozinha furiosa, formada por uma bateria que não dava um
segundo de trégua e por um baixo que pulsava furioso e voava livre como a
imaginação do músico primoroso que o tocava, a guitarra de Alex Lifeson soava
como um manto feito de diversos tipos de materiais, indo da distorção mais suja
ao dedilhado mais limpo, completando a alquimia sonora de um trio que mais soava
como uma orquestra.
Com
15 anos, em 1986, época em que não havia acesso a todos os discos que queríamos
ouvir no Brasil, comecei a garimpar e logo completei minha coleção do Rush.
Naquela época, quando eu guardava dinheiro para comprar discos, adquirir as
bolachas do Rush que eu ainda não tinha tornou-se prioridade número um. Para
isso, eu pegava um ônibus com um amigo em Araraquara e descia em Ribeirão
Preto, onde havia uma loja com mais opções de rock. Em uma oportunidade, voltei
de lá com quatro discos do Rush, de uma só vez. E assim fui comprando até que,
em 1987, comprei pela primeira vez um disco novo do Rush: Hold Your Fire.
Chegar
em casa e colocar um disco novo do Rush na aparelhagem de som, ao mesmo tempo
em que lia as letras no encarte, com um dicionário inglês-português ao meu
lado, foi um ritual que se repetiu até 2012, quando comprei o álbum mais
recente, Clockwork Angels. Foram 25 anos de ansiedade lendo notícias sobre quando
entrariam em estúdio, depois sobre a sessão de gravação de cada disco, depois
pescando uma notícia aqui e outra ali sobre a data de lançamento e finalmente
comprando o disco.
Isso
serviu para todos os discos ao vivo e todas as fitas de vídeo e,
posteriormente, DVDs lançados. Nessas duas décadas e meia, acompanhei a banda
por meio de revistas especializadas e depois pela internet, quando esta se
popularizou. Aprendi muito bem o inglês traduzindo as letras, na época em que
não havia as facilidades tecnológicas de hoje. Eu tinha um caderno de letras do
Rush traduzidas por mim, desde o primeiro disco até o Roll the Bones. Ainda
tenho esse caderno em algum lugar. As traduções, sempre com o dicionário ao
lado, começavam assim que eu começava a ouvir cada novo disco.
Em
1989 eu fiquei sócio de um fã-clube inglês do Rush e passei a receber os
fanzines em casa. Acompanhei as notícias sobre a turnê do disco Presto e sobre um
grupo de fãs ingleses que viajaria aos Estados Unidos para ver alguns shows do
Rush e ficaria hospedado na casa de amigos da banda Dream Theater. “Depois do
ensaio, fomos todos ver o show do Rush”, diz um dos relatos, que lembrei anos
depois, quando eles ficaram famosos. Na época, eram apenas fãs do Rush que
tinha uma banda.
Com
o passar dos anos, a vontade de ver um show do Rush ao vivo foi crescendo e, em
1992, escrevi uma carta para o escritório da Anthem Entertainment, o quartel-general
da banda em Toronto, no Canadá, pedindo para que considerassem uma vinda ao
Brasil, porque tinham muitos fãs aqui. Como resposta, recebi um “Tour Book”
maravilhoso da turnê do disco Roll the Bones (1992). Mas nada de shows no
Brasil ainda.
Foi
mais ou menos naquela época também que comecei a ler entrevistas de Neil Peart
dizendo que estava cansado de fazer turnês, que gostava de ficar em casa e que
a rotina de viajar e se hospedar de hotel em hotel, longe da família, estava
cada vez mais estressante. Mas ele tinha pouco mais de 40 anos e sempre foi
rapidamente convencido pelos companheiros a seguir adiante. Até 1997, quando
Selena, filha única de Peart, morreu aos 19 anos de acidente de carro e, um ano
depois, após um câncer fulminante, sua esposa Jacqueline também morreu. A
tragédia interrompeu as atividades do Rush até 2001, quando Peart decidiu que
não queria jogar fora tudo que havia conquistado na música, e voltou a ensaiar
com seus companheiros, o que resultou no disco Vapor Trails (2002).
Acompanhei
tudo isso “de perto”, sentado em meu computador lendo todas as notícias na
internet, seguindo todas as discussões em fóruns especializados na banda e
comprando todas as publicações sobre música com alguma matéria do trio. E mal
acreditei quando fiquei sabendo que finalmente, em 2002, o Rush, aquela banda
que despertou meu amor pela sua música em 1987, viria fazer shows no Brasil.
Assisti
a dois shows do Rush em 2002, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro, este
último gravado e lançado no DVD Rush in Rio, que traz também um documentário
sobre a viagem ao País. Em 2010, assisti outros dois shows, também um em São
Paulo e outro no Rio, da turnê Time Machine, em que tocaram o disco Moving
Pictures na íntegra.
Fiquei
torcendo para que voltassem nos anos seguintes, mas só pude acompanhar trechos
e relatos de shows pela internet, inclusive alguns dessa última turnê, que
terminou no dia 1º de agosto em Los Angeles, com um repertório espetacular e
performances impecáveis. O show de Los Angeles foi prestigiado pelos bateristas
Doane Perry (Jethro Tull), Stewart Copeland (The Police), Taylor Hawkins (Foo
Fighters), Chad Smith (Red Hot Chili Peppers) e Danny Carey (Tool), todos
querendo ver mais uma vez o professor Neil Peart.
Após
o fim da turnê, e mesmo enquanto ainda estavam na estrada, as declarações dos
integrantes da banda têm sido meio que conflitantes. O guitarrista Alex Lifeson
diz que sofre há anos de artrite nas mãos, o que exige ainda mais atenção ao
que está fazendo durante os shows e Neil Peart sofre de tendinite nos dois
ombros, o que o faz sofrer com dores desde o início dos ensaios até o último
show da temporada. Além disso, reconstruiu sua vida pessoal casando-se
novamente e hoje tem uma filha de cinco anos, o que o faz sentir ainda mais o
tempo longe de casa. O baterista chegou a dizer recentemente que, pelo menos em
parte, concordou em fazer as duas últimas turnês por um sentimento de gratidão
e de dever para com os dois amigos, pelo tempo em que ficaram esperando sua
recuperação após a tragédia que atingiu sua vida.
Já
Geddy Lee diz que sente o peso dos anos como todo mundo de sua idade, mas que
tem muita saúde e adora viajar e tocar. Comprou recentemente um arsenal de
novos baixos e reformou seu estúdio caseiro, louco de vontade de voltar a
compor. Mesmo o guitarrista Alex Lifeson já disse que seus problemas de saúde
não impedem que dê um pulinho na casa de Lee para comporem juntos, pois ele tem
“toneladas” de riffs guardados.
O
fato é que o Rush não existe sem um dos integrantes e todos têm perspectivas
diferentes do passar dos anos. E o tempo não para, apesar dos apelos da banda na
música Time Stand Still, do disco Hold Your Fire, mais uma letra grandiosa de
Peart. Os três sempre terão muita música dentro de suas cabeças, mas encarar a
estrada, pelo menos para alguns deles, se tornou uma tarefa cada vez mais
penosa.
O
Rush é uma banda que, durante sua carreira, venceu todas as barreiras, inclusive
do preconceito de parte importante da imprensa musical, que não entendia o tipo
de música que faziam e transformava essa ignorância em críticas ácidas e
maldosas sobre seus discos. Eles são uma banda que construiu sua base de fãs com
muito trabalho, caindo na estrada e tocando, não se entregando nunca a modismos
passageiros ou a conselhos de produtores e diretores de gravadora, ao mesmo
tempo em que absorviam influências de novos estilos musicais ao longo das
décadas, sempre mantendo intacta sua assinatura.
Eu,
como fã, não tenho do que reclamar. Eles fizeram todos os discos que eu queria
ouvir, continuaram tocando cada vez melhor e colocaram cada música obscura que
os fãs pediram em seus repertórios de shows. Vieram ao Brasil, gravaram um DVD
ao vivo no País e fizeram juras de amor ao público, do qual faço parte.
Entraram até mesmo para o ultra exclusivo e comercial Rock and Roll Hall of
Fame, com direito a discurso irônico de Alex Lifeson, após a banda ser apresentada
pelos fãs Dave Ghrol e Taylor Hawkins, do Foo Fighters, e com direito a uma
performance no palco para exorcizar todos os anos em que foram esnobados pelos
clubinhos de “entendidos de rock”.
Li
entrevistas de Geddy Lee e Alex Lifeson em que falam em fazer temporadas
esporádicas de shows no Madison Square Garden, em Nova Iorque, coisa de dez
noites seguidas, para que todos os fãs tenham oportunidade de viajar até lá para
vê-los ao vivo mais uma vez, sem que os integrantes da banda e sua equipe tenham
que passar por longas viagens e períodos fora de casa. E eles dizem ainda que
certamente seguirão lançando discos.
O
Rush tem direito de fazer o que quiser. Os fãs, como eu, podem até soltar uma
hora esse choro engasgado na garganta, pela sensação de que a saga dos três
reis magos está chegando ao final. Podemos espernear e exigir mais shows no
Brasil, na Europa, seja onde for. Mas, no final das contas, não temos esse
direito. Porque, no fim das contas, o mais importante é que a música com a qual
eles nos presentearam vai durar para sempre.