quinta-feira, 12 de abril de 2018

Existe muita vida lá fora



Nos últimos tempos li dois livros de não ficção escritos por artistas que admiro muito: “Sobre a Escrita” (Stephen King) e “Longe e Distante” (Neil Peart). Nas duas obras, os autores comentam sobre o esforço contínuo para não deixar que o trabalho se transforme no aspecto mais importante de suas vidas.
Alguém pode dizer que é fácil para artistas com talento e fama gigantescos dizer que o trabalho não os define, já que conquistaram independência para fazer tudo mais que desejarem. Mas acredito que justamente por seus nomes se associarem com tanta força aos seus ofícios, o conselho é bastante válido.
Fui jornalista durante 20 anos, trabalhando em diversos veículos de comunicação em Araraquara-SP e, mais de uma vez, pessoas poderosas e influentes bateram nas minhas costas e disseram “você é o melhor jornalista da cidade”. Claro que nunca acreditei que era o “melhor jornalista da cidade”, o que seria até patético, já que nem dentro da minha casa fui o melhor, pois meu pai foi um brilhante profissional da área.
Mas, por muito tempo, acreditei que ser jornalista era o que me definia, já que dediquei longas horas em redações de jornal, fechando edições, sem comer direito e longe das pessoas que me amam, apenas porque acreditava que aquilo me daria um futuro, seja lá qual fosse. Bem, o futuro chegou, minha profissão está cada vez mais desvalorizada e eu, assim como tantos colegas, não consigo mais apostar todas as minhas fichas no ofício que exerci durante tanto tempo.
Depois de duas décadas como jornalista, demorou um pouco para aceitar que tudo mudou. Fiquei meio desnorteado, me sentindo desvalorizado, achando que por não ser mais jornalista não era mais nada na vida.
Hoje sou artesão, estampo camisetas, atividade que me proporciona enorme prazer, pois une paixões como música e cinema, celebradas em peças personalizadas. Fiquei muito feliz também por descobrir que ainda posso aprender uma atividade e trabalhar nela tão bem quanto fazia em minha outra profissão.
Ainda trabalho em jornais como freelancer e continuo com necessidade de escrever, o que faço em espaços como esse, já que os antigos modelos se esgotaram. Mas é bom diversificar e descobrir outra profissão, principalmente porque hoje sei que, se não puder exercê-la mais, tenho condições de mudar de novo, quantas vezes for necessário.
As pessoas precisam rotular umas às outras o tempo todo. Se alguém está passando por uma fase ruim e exagera na bebida, logo vira “o bêbado”, ou se fica durante muitos anos fazendo as mesmas coisas em uma empresa, logo vira “o porteiro”, “a tia do café”, “o jornalista” ou até mesmo “o baterista”. Por isso é tão importante sabermos quem somos de verdade, independentemente dos rótulos que nos grudam na testa.
Se um dia fui “o jornalista” e não existe mais emprego na área, o que sou agora? Nada? Isso não é verdade. E uma amiga muito importante me ensinou justamente isso na fase em que ainda estava aceitando que teria de mudar de área. Ela olhou em meus olhos e disse: “Você é tão importante pra tanta gente, porque acredita que não é mais nada agora?”.

Seguem trechos dos livros que mencionei no texto:


“A última coisa sobre a qual quero falar nesta parte é minha mesa. Durante anos sonhei com uma peça de carvalho maciço que dominasse uma sala – nada de mesa pequena na lavanderia-closet de um trailer, nada de espaços apertados em uma casa alugada. Em 1981, consegui a mesa que eu queria e a coloquei no meio de um escritório espaçoso, com claraboia (um estábulo convertido em loft nos fundos da casa). Durante seis anos eu me sentei àquela mesa, bêbado ou fora de mim, como o capitão de um navio comandando uma viagem para lugar algum.
Depois de um ano ou dois sóbrio, eu me livrei daquela monstruosidade e montei uma sala de estar onde a mesa ficava antes, escolhendo os móveis e um belo tapete turco com a ajuda da minha mulher. No início da década de 1990, antes de saírem para o mundo, meus filhos costumavam aparecer à noite para assistir a um jogo de basquete, um filme ou comer pizza. Eles geralmente deixavam uma montanha de migalhas quando iam embora, mas eu não me importava. Eles vinham, pareciam gostar de estar comigo, e eu sei que gostava de estar com eles. Comprei outra mesa - artesanal, linda e com metade do tamanho da T. Rex. Coloquei no lado esquerdo do escritório, em uma quina sob o telhado inclinado, que parece muito com aquele sob o qual eu dormia em Durham. Mas não há ratos nas paredes e nem uma avó senil no andar de baixo gritando para que alguém alimente Dick, o cavalo. Estou sentado aqui agora, um homem coxo de 53 anos, com visão ruim e nenhuma ressaca. Estou fazendo o que sei fazer, tão bem quanto sou capaz. Passei por todas as coisas que contei aqui (e muitas outras que não contei), e agora vou contar a você tanto quanto puder sobre a profissão. Como prometido, não vai ser longo.
Começa assim: coloque sua mesa em um canto e, todas as vezes em que se sentar para escrever, lembre-se da razão de ela não estar no meio da sala. A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário.”

(Stephen King – “Sobre a Escrita”)


“De volta a abril desse ano, pouco antes do início da turnê de Snakes and Arrows, fui entrevistado para um canal de TV do Canadá especializado em música, o MuchMusic. O cinegrafista colocou o entrevistador e eu na sala de ensaios, em frente à bateria, onde eu estava trabalhando já há várias semanas. Algumas das perguntas do jornalista pareciam pender para certa visão estrelada do meu trabalho, principalmente com relação aos shows, e tentei explicar para ele que eu não considero a turnê, ou até mesmo tocar bateria, como minha vida.
Ele pareceu perplexo, talvez tenha me julgado entediado e cínico, porque sua próxima pergunta foi: “Quando você começou a se sentir assim?”.
Parei para pensar por um segundo, então fiquei feliz em sentir a lâmpada mental acender com uma resposta verdadeira e clara. Pude responder com toda a sinceridade: “Cerca de um mês depois do início da primeira turnê, em 1974”. Foi realmente quando comecei a sentir que sair em turnê não era “suficiente”, o que resultou em adotar a leitura como um meio de aproveitar melhor os dias e noites na estrada.
Um pouco por mera contrariedade, mas parte pelo desejo de contexto, eu geralmente me refiro a tocar bateria com desrespeito deliberado, como “o emprego” ou “bater coisas com baquetas”. Obviamente significa muito mais para mim do que isso e tem sido algo central na minha vida, mas mesmo assim parece meio triste ouvir alguém dizer que seu trabalho é sua vida.
Não há amigos nem família? Nem leitura ou escrita? Nem trilhas ou esqui cross-country ou observação de pássaros ou andar de moto ou nadar?
Só trabalho?
Acho que não.
No começo da turnê, quando tocamos em Portland, Oregon, alguém da plateia parece que tinha assistido àquela entrevista, e se aventurou a discordar publicamente da minha opinião quanto à minha própria vida. Bem no fundo, à esquerda do palco, vi um cartaz enorme, com letras garrafais, em que se lia “NP – ESTA É SUA VIDA”.
Bem, obrigado, mas não, obrigado.
É claro que é apenas a minha opinião, mas para mim, minha vida não é dedicada ao lugar, mas à jornada e à hora da chegada.
Tendo consciência disso o tempo todo, sei que cedo demais vai chegar a hora da partida.”

(Neil Peart – “Longe e Distante”)

Um comentário:

  1. Ainda não li "Longe e distante" (está entre os próximos da minha lista)! "Sobre a escrita" é fantástico! E juntando dois mestres em um mesmo texto, você também fez uma crônica fantástica!

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