sexta-feira, 18 de abril de 2014

Agora, um mundo sem poesia


É curioso como as lembranças que temos de alguns períodos de nossas vidas estão conectadas a uma música que ouvíamos ou a um livro que estávamos lendo. Quando ouvimos falar de um livro legal ou de uma canção que conhecemos em certa época, imediatamente todas as sensações que nos cercavam naquele contexto nos invadem. Recordamos as pessoas com quem nos relacionávamos, da fase da vida em que estávamos, do lugar onde morávamos e por aí vai.
Lembro-me perfeitamente da época em que li Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Eu morava em um prédio bem antigo no centro de Bauru, em 1996, onde só viviam estudantes. Era uma época relativamente conturbada da minha vida. Eu não tinha certeza se aquele era o curso que eu queria fazer, ao mesmo tempo em que me achava muito velho para abandoná-lo. Eu gostava muito de Bauru, mas sentia falta de meus amigos de Araraquara. Eu sentia saudade do que estava deixando, enquanto saudava o novo. Uma mistura de sentimentos que deixavam minha cabeça confusa.
Passei um dia em um sebo e comprei Cem Anos de Solidão. Quando mergulhei naquele livro, percebi que a saga cheia de dor, prazer, alegria e sofrimento da família Buendía na aldeia de Macondo era tudo o que precisava para me sentir melhor. Eu lia e lia e lia o livro antes de dormir e, quando me deitava, sonhava com seus personagens, que povoavam meu imaginário dia e noite. Eu acabava criando meus próprios capítulos durante o sono, como se minha mente se recusasse a vir à tona após aqueles mergulhos nas desventuras criadas por Gabo.
Nada mais natural que aqueles personagens reaparecessem durante a noite, pois com seu realismo fantástico, Gabriel García Márquez conta histórias que têm pessoas de carne e osso, mas que fazem coisas que só são possíveis em sonhos. Tudo é permitido em seu universo e daí vem grande parte da identificação e da paixão do leitor pelo livro. Gabo descreve o mundo ideal, para que possamos fugir de nossa realidade tão limitada. Os personagens podem tudo, apesar de sofrerem as dores que todos nós sofremos.
Uma das passagens mais impressionantes do livro, a qual nunca mais esqueci, e que me fez chorar quando li, na verdade, foi quando morre um dos personagens, José Arcadio Buendía, e, para descrever a dor que aquela perda causou e a ternura que sentiam todos que o amavam, Gabo termina o capítulo assim: "Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar". É o que todos nós queremos que aconteça após a morte de uma pessoa querida.
Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, Gabriel García Márquez é descrito, principalmente por Cem Anos de Solidão, como um escritor que mudou vidas. Não é por acaso. Ele nos ensinou a ver a realidade como deveria ser. Com mais delicadeza e sensibilidade. Seus livros permanecem imortais, mas é inevitável o sentimento de que o mundo perde bastante de sua poesia sem que Gabo esteja entre nós. É como o sentimento de todos que terminam de ler Cem Anos de Solidão: tristeza porque a história acabou e vontade de relê-lo imediatamente.
Uma tempestade de minúsculas flores amarelas ainda seria muito pouco pra essa noite.

2 comentários:

  1. seria bem pouco mesmo, Bozó... ele merece todas as minúsculas flores amarelas do mundo... lindo texto, como sempre!!

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    1. Obrigado, Fer! Vindo de você, que é dona de um belíssimo texto e fã do Gabo como eu, sabe que fico mais lisonjeado ainda, né? Beijo!

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